quinta-feira, junho 20, 2024

 

Uma Breve História da Religião

 Fonte consultada:  Osho, O Livro da sua Vida - Crie o seu próprio caminho para a liberdade, Editora Pensamento-Cultrix, 2019. ISBN: 978-85-316-0975-6

  Sobre corpo e alma...

A religião passou por muitas fases. A primeira fase foi a mágica, e ela  não terminou ainda. Muitas tribos aborígines ao redor do mundo ainda vivem nessa primeira fase da religião, que se baseia em rituais mágicos de sacrifício para os deuses. Trata-se de um tipo de suborno para que os deuses ajudem ou protejam você. Qualquer coisa que, aos seus olhos, tem valor - seja comida, roupas, seus filhos, ornamentos, o que for -, você oferece aos deuses. Não que algum deus receba alguma coisa, evidentemente; mas o sacerdote recebe - ele é o mediador, ele é que lucra com isso. E o mais estranho é que, durante pelo menos dez mil anos, essa religião mágica, ritualística, cativou a mente humana.

São muitas as falhas dessas religiões - 99 por cento das tentativas não dão em nada. Por exemplo, as chuvas não caem na época certa; então a religião mágica acredita que, fazendo um sacrifício ritual, os deuses ficarão satisfeitos e a chuva cairá. De vez em quando a chuva de fato cai - mas também cai na região em que as pessoas não estão apaziguando os deuses nem fazendo rituais. Ela cai até mesmo nas terras dos inimigos das pessoas que pediram a ajuda dos deuses.

O sacerdote certamente é muito mais astuto que as pessoas que ele está explorando. Ele sabe perfeitamente bem o que está realmente acontecendo. Os sacerdotes nunca acreditam em Deus, lembre-se, eles não podem acreditar, mas fingem que acreditam mais do que todo mundo. Eles têm de fazer isso, essa é a profissão deles. Quanto mais a fé, mais multidões ele atrai, por isso ele finge. Mas eu nunca conheci um sacerdote que acreditasse na existência de um Deus. Como ele pode acreditar? Todo dia ele vê que só raramente, por mera coincidência, um ritual ou uma prece é bem-sucedida! A maioria não surte nenhum efeito. Mas ele sabe como explicar isso aos pobres: "O ritual de vocês não foi feito da maneira certa. Vocês não estavam cheios de pensamentos puros enquanto o realizaram".

Ora, quem está cheio de pensamentos puros? E o que é um pensamento puro? Por exemplo, no ritual jainista, as pessoas têm de jejuar. Mas, enquanto elas realizam o ritual, elas estão pensando em comida - esse é um pensamento impuro. Ora, uma pessoa faminta pensando em comida... Eu não sei como um pensamento desses pode ser impuro. É o pensamento certo. Na verdade, a pessoa está errada em continuar o ritual numa hora dessas, ela devia correr para um restaurante!

No entanto, o padre tem uma explicação muito simples para justificar o fracasso do ritual. Deus nunca falha, ele está sempre pronto para proteger você - ele é o provedor, o criador, o mantenedor; ele nunca deixa você na mão. Mas você falha com ele! Embora você esteja fazendo a prece ou realizando o ritual, você está cheio de pensamentos impuros. E as pessoas sabem que o sacerdote está certo - eles realmente estavam pensando em comida, ou numa bela mulher que passava e de repente surgiu a idéia de que ela era bonita e brotou o desejo de possuí-la. Eles afugentaram os pensamentos, mas já era tarde demais; já havia acontecido. Todo mundo sabe que tem pensamentos impuros.

Ora, eu não vejo nada de impuro nisso. Se uma mulher bonita passa por um espelho, o espelho também refletirá a beleza da mulher - o espelho é "impuro"? A sua mente é um espelho, ela simplesmente reflete. E a sua tem consciência de tudo que está acontecendo à sua volta. Ela comenta, está sempre fazendo um comentário. A sua mente diz que a mulher é bonita - e, se você sente desejo pelo belo, eu não vejo nada demais nisso. Se você sentir desejo pelo feio, aí sim há alguma coisa errada; você é doente. A beleza tem de ser apreciada. Quando você vê uma bela pintura, você tem vontade de possuí-la. Quando você vê qualquer coisa bonita, o pensamento é quase automático, "Se essa coisa linda fosse minha..." Ora, esses pensamentos são naturais! Mas o sacerdote  dirá, "A chuva não veio por causa dos seus pensamentos impuros" - e você fica absolutamente desarmado. Você sabe que teve "pensamentos impuros", fica com vergonha de si mesmo. Pois Deus está sempre certo.

Contudo, esses seus pensamentos também estavam passando pela sua cabeça nas ocasiões de sucesso, em que a chuva de fato caiu; você era a mesma pessoa de sempre. Se estava com fome, você estava pensando em comida; se estava com sede, você estava pensando em beber água. Esses pensamentos também lhe ocorreram quando a chuva veio, mas ninguém se incomodou com os seus "maus" pensamentos. O sacerdote começa a elogiar você, a sua grande austeridade, a sua prece fervorosa: "Deus ouviu as suas preces". E o seu ego fica tão inchado que você não diz, "Mas e os meus pensamentos 'impuros'?" Quem pensaria em mencionar pensamentos impuros se foi bem-sucedido e teve as suas preces atendidas?

A religião mágica é uma das mais primitivas que existem, mas ainda há resquícios dela na atual segunda fase; não há uma distinção muito clara entre uma e outra. A segunda fase é a pseudo-religião: o Hinduísmo, o Cristianismo, o Islamismo, o Judaísmo, o Jainismo, o Budismo, o Sikhismo - são mais de trezentos "ismos" ao todo. Estas são as pseudo-religiões. Elas foram um pouco mais longe do que a religião mágica.

A religião mágica é simplesmente ritualística. É um esforço para persuadir Deus a ajudar você. O inimigo vai invadir o seu país, não chove há muito tempo ou chove demais e os rios estão transbordando e as plantações estão sendo destruídas - sempre que você se vê em dificuldade, você pede ajuda a Deus. Mas a religião mágica não é uma disciplina imposta para você. Por isso as religiões mágicas não são repressoras. Elas ainda não estão interessadas na sua transformação, em mudar você.

As pseudo-religiões desviam a atenção de Deus e se voltam para você. Deus continua em cena, mas tem um papel mais secundário. Para o adepto da religião mágica, Deus está muito próximo; ele pode conversar com ele, pode persuadi-lo. As pseudo-religiões ainda carregam a idéia de Deus, mas agora ele está mais distante - muito mais distante. Agora, o único jeito de alcançá-lo não é realizando rituais, mas promovendo uma mudança significativa no seu estilo de vida. As pseudo-religiões começam a moldar você e a mudá-lo.

As religiões mágicas deixam que as pessoas sejam como são - é por isso que os adeptos dessas religiões são mais naturais, menos falsos, mas mais primitivos, rudes, incultos. As pessoas que pertencem às pseudo-religiões são mais sofisticadas, mais instruídas, mais educadas. A religião, para elas, não é apenas um ritual, é toda uma filosofia de vida.

O uso da repressão começa nesse ponto, na segunda fase da religião. Por que todos os religiosos usaram a repressão como estratégia básica? Para que? É muito importante entender esse fenômeno da repressão, porque as religiões sempre diferem uma da outra de um jeito ou de outro, num ou noutro aspecto. Não existem duas religiões que concordem em alguma coisa, a não ser no quesito repressão. Portanto, a repressão parece ser o maior recurso que elas têm nas mãos. O que fazem com ela?

A repressão é um mecanismo para escravizar você, para converter a humanidade a um regime de escravidão psicológica e espiritual. Muito antes de Sigmund Freud descobrir o fenômeno da repressão, as religiões já o usavam havia cinco mil anos, e com sucesso. A metodologia é simples - fazê-lo se voltar contra você mesmo. Depois que você se volta contra você mesmo, muitas coisas estão fadadas a acontecer. Primeiro, você vai se enfraquecer. Você nunca mais será a mesma pessoa forte que já foi um dia. Antes você era um só, agora você não é nem dois, mas muitos. Antes você era uma única entidade indivisa, completa; agora você é uma multidão. Você ouve a voz do seu pai dentro de você, vinda de um fragmento; ouve a voz da sua mãe, vinda de outro fragmento, e dentro de você eles ainda estão brigando entre si - embora possam nem estar mais neste mundo. Todos os seus professores têm um compartimento dentro de você, e todos os sacerdotes com que já cruzou, todos os monges, todos os bons samaritanos, moralistas - eles todos têm um lugar dentro de você, que são pequenas fortalezas. Seja quem for que o tenha impressionado, essa pessoa passa a ser um fragmento dentro de você. Agora você é muitas pessoas - mortas, vivas, fictícias, de livros que você leu, de escrituras sagradas - que não passam de uma ficção religiosa, como a ficção científica. Se você se voltar para dentro, vai descobrir que você está perdido em meio a uma grande multidão. Não consegue nem se reconhecer em meio a essa gente toda, nem saber qual é a sua face original. Eles todos fingem ser você, eles todos têm rostos iguais ao seu. Falam a sua língua e vivem brigando uns com os outros. Você vira um campo de batalha.

A força do indivíduo único acabou. Você está sempre num dilema. Aonde quer que você vá, será derrotado, e grandes parcelas do seu ser estarão contra você. Em tudo que fizer, você estará sempre contando com o apoio da minoria. Isso significa que a maioria vai querer uma revanche - e de fato vai dá-la.

O problema é que você não consegue fazer nada com base na sua integridade sem que alguém mais tarde não o condene, não diga que você é um burro, um idiota.

Então, a primeira coisa é que as pseudo-religiões acabaram com a integridade, com a inteireza, com a força do ser humano. Isso é necessário caso você queira escravizar as pessoas - pessoas fortes não podem ser escravizadas. E trata-se de uma escravidão muito sutil, tanto psicológica como espiritual. Você não precisa de algemas nem de correntes nem celas, nada disso - as pseudo-religiões têm esquemas muito mais sofisticados. E elas começam a entrar em ação desde o momento em que você nasce; não perdem tempo.

As religiões condenaram o sexo, condenaram o gosto pela comida - condenaram tudo de que você pode gostar - música, arte, canto, dança. Se observar este mundo afora e pesquisar todas as condenações de todas as religiões, você verá: juntas, elas condenaram o ser humano inteiro. Nenhuma partezinha dele foi deixada de fora.

Sim, cada religião só condenou um pedacinho - porque, se condenasse a pessoa toda, ela poderia simplesmente ficar histérica. Você tem de ter uma medida, para que ela se condene e sinta culpa, e depois queira se libertar dessa culpa e se disponha a pedir a sua ajuda. Você não pode condená-la a tal ponto que ela simplesmente fuja de você ou se jogue no mar e acabe com a própria vida. Isso não seria um bom negócio.

Depois que se sente culpado, você cai nas garras do sacerdote. Não pode mais fugir, porque ele é o único que pode livrar você das suas partes pecaminosas, que pode torná-lo capaz de se postar diante de Deus sem se envergonhar. Ele cria a ficção de Deus. Cria a ficção da culpa. Cria a ficção de que um dia você estará diante de Deus, por isso você deverá estar cristalino e puro, num estado em que possa se postar diante dele sem sentir medo ou vergonha.

Quando a religião se tornar científica, ela não irá mais para o plural (religiões). Nesse caso, ela será simplesmente religião e funcionará justamente ao contrário das pseudo-religiões. Sua função será livrá-lo de Deus, livrá-lo do céu e do inferno, livrá-lo do conceito de pecado original, livrá-lo da própria idéia de que você e a natureza estão separados - livrá-lo de qualquer tipo de repressão.

Com toda essa liberdade, você conseguirá compreender a expressão do seu ser natural, seja ela qual for. Não há por que se sentir envergonhado. O universo quer que você seja do seu jeito, é por isso que você é desse jeito. O universo precisa que você seja desse jeito, do contrário ele teria criado outra pessoa, não você. Portanto, no meu entender, não ser você mesmo é a única coisa irreligiosa que você pode fazer.

Seja você mesmo sem se impor condições, sem se prender por amarras - seja simplesmente você mesmo e você será religioso, porque será saudável, será inteiro. Você não precisa de sacerdote, não precisa de psicanalista, não precisa de ajuda de ninguém, pois você não está doente, não é defeituoso, não vive paralisado. Todo defeito e toda paralisia desaparecem quando você encontra a liberdade.

A religião verdadeira pode ser condensada em uma única frase: liberdade total para você mesmo (assim como Deus tem liberdade total).

Exprima o que você sente e o que pensa de todas as maneiras possíveis, sem sentir medo. Não há nada a temer, não há ninguém para puni-lo ou recompensá-lo. Se você expressar o seu ser da maneira mais verdadeira possível, no seu fluxo natural, você será imediatamente recompensado - não no amanhã, mas hoje, no aqui e agora.

Você só é punido quando vai contra a sua natureza. Mas essa punição é um auxílio, é simplesmente uma indicação de que você se distanciou da sua natureza, de que você se desviou um pouco, perdeu o rumo - então volte. A punição não é uma vingança, não! A punição é só um esforço da natureza para despertá-lo. "Ei, o que você está fazendo?" Alguma coisa está errada, alguma coisa está contra você. É por isso que surge a dor, a ansiedade, a angústia.

Quando você é natural e se expressa assim como as árvores e os pássaros - que têm mais sorte, porque nenhum pássaro nunca quis ser sacerdote e nenhuma árvore jamais teve a idéia de ser psicanalista -,  assim como as árvores, os pássaros e as nuvens, você se sentirá em casa na existência.

E estar em casa é o ponto principal da religião.


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